Encontro antecipado
Percebi que o mundo não precisa de meus próprios filhos, por isso resolvi adotar” – Clarisse Meirelles
Até os cinco meses Pedro viveu pelas ruas do Rio de Janeiro com sua mãe, alcoólatra. Hoje, dois anos e meio depois, aquele menino desnutrido e doente é o mais alto de sua turma do maternal, em uma escolinha da zona sul carioca. Sua história começou a mudar quando o Estado tirou-o da guarda da mãe. Durante um ano viveu num abrigo para menores. Em junho do ano passado, Pedro foi finalmente adotado pelo professor e tradutor Ângelo Barbosa Pereira, 38 anos. Nada de extraordinário, não fosse Ângelo um homem solteiro. O caso de Pedro revela uma nova realidade que se vem tornando rotina na 1ª Vara da Infância e da Adolescência do município do Rio de Janeiro. Ali, homens e mulheres que se responsabilizam sozinhos pela adoção já respondem por 30% dos processos realizados, e a tendência é crescer.
Na longa fila de espera do Juizado, há cinco casais para cada candidato. Até o ano passado, eram dez casais para cada solteiro. Só até julho deste ano, 11 crianças já foram para suas novas casas apenas com a mãe ou com o pai. A adoção por pessoas solteiras está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, mas nos outros Estados os juízes não costumam utilizar essa possibilidade. “Não adotamos critérios discriminatórios nem preconceituosos. O que está em jogo é se o candidato tem disponibilidade e equilíbrio emocional, além de recursos financeiros para manter a criança”, explica o juiz titular da 1ª Vara, Siro Darlan. Há três anos no cargo, Darlan conseguiu desemperrar a máquina burocrática e acelerar o processo de adoções. Se antes levavam-se três anos em média para conseguir adotar, hoje o procedimento finaliza-se em alguns meses.
Não fiz por obrigação, mas pelo prazer de estar com Pedro. Adotá-lo foi a melhor coisa da minha vida”
Ângelo Barbosa Pereira, professor e tradutor
Segundo o psiquiatra Alfredo Castro Neto, toda criança adotada costuma passar por três grandes questionamentos: como foi seu nascimento, por que foi escolhido por quem a adotou e quem são seus pais biológicos. “Adotar uma criança sozinho exige muita responsabilidade”, lembra o psiquiatra. Por esse motivo, Castro Neto acha necessária uma análise do equilíbrio emocional das pessoas que se propõem a isso.
Para se habilitar a adotar uma criança, algo que não estava nos seus planos até conhecer Pedro, Ângelo passou por uma minuciosa avaliação, feita por um assistente social e um psicólogo. “O problema é que muita gente se candidata por medo de uma velhice solitária ou para fazer caridade”, explica o juiz Siro Darlan.
“Não posso dizer que ele não vai sentir falta de uma mãe, mas também não é certo que vá ficar traumatizado por isso”, defende Ângelo, que se encantou por Pedro desde o dia em que o viu pela primeira vez, num orfanato. Antes de ter a guarda definitiva do menino, Ângelo abriu mão de noitadas frequentes e formou um time de empregada doméstica e babá para nunca deixá-lo sozinho. “Não fiz por obrigação, mas pelo prazer de estar com Pedro. Adotá-lo foi a melhor coisa da minha vida”, diz. Segundo a diretora do Serviço Social da 1ª Vara, Cleyse Assis, muitos casais adotam porque sentem a obrigação social de ter filhos. “O solteiro o faz por uma opção muito bem pensada”, diz.
Outra característica desses pais é ter menos preconceito e exigências quanto à criança que querem adotar. Os casais chegam ao Juizado em busca de recém-nascidos brancos e, de preferência, meninas. Às vezes, esperam durante anos a sua vez na lista, e não levam para casa bebês maiores.
Meu filho costuma viajar comigo e com meu namorado, mas a relação já passou por crises”
Rudy, cabeleireira
A jornalista inglesa Diana Constance Kinch tem três filhos brasileiros, todos adotados. Além de Raoul e Daniel, ela é mãe de Beatrice, nascida com uma doença congênita no coração e rejeitada pela mãe natural. A jornalista quis conhecê-la assim mesmo, quando tinha cinco semanas. Apaixonou-se pela menina e resolveu enfrentar os problemas. Beatrice, hoje com seis meses, toma remédios diariamente mas já fez muitos progressos. “Sei que ela terá que operar quando alcançar 10 kg (está com 5,7 kg), mas estou confiante na recuperação.”
Diana ficou estéril há 12 anos, em consequência de uma gravidez tubária, e já havia tentado a fertilização in vitro algumas vezes, sem sucesso. Veio para o Brasil há 11 anos, casada, mas se separou logo depois e aí resolveu formar uma família. “Percebi que o mundo não precisa de meus próprios filhos, por isso resolvi adotar, mesmo sozinha.” Logo que a caçula ficar boa, Diana pensa em adotar mais um. Candidatos não faltam. Só nas 325 instituições para menores no município do Rio existem oito mil crianças à espera de uma chance.
Siro Darlan diz que não tem preconceitos. Ele não exagera. Nunca se preocupou com o fato de muitos dos pais adotivos serem homossexuais. “Os valores da sociedade mudam. Buscamos o melhor para as crianças, independentemente da opção sexual dos pais”, explica. Um sinal da mudança dos tempos foi o resultado do Você decide, da Rede Globo, no início de agosto. O público tinha que optar se, depois da morte da mãe, o bebê ficava com a tia, que nunca via a menina e era pobre, ou com os patrões da mãe, um casal homossexual de classe média. Apesar de tendencioso, o resultado do episódio foi surpreendente: 137 mil telespectadores foram favoráveis a que o casal ficasse com a menina e apenas 12 mil votaram na tia.
A psicanalista Maria Teresa Maldonado, autora do livro Caminhos do coração. Pais e filhos adotados, gostou do resultado. “Pode haver lares bem-estruturados tanto com pais hetero quanto com homossexuais”, diz. Mas, segundo o psiquiatra Alfredo Castro Neto, há pesquisas americanas que indicam que a sociabilidade do filho de um homossexual pode ser abalada. “A criança pode sofrer com a vergonha e ficar ansiosa. Mas, decididamente, a orientação sexual não é definida pela dos pais, no máximo pela relação com eles”, lembra.
Um exemplo é o da cabeleireira Rudy, transexual que adotou um recém-nascido há 20 anos. Se tivesse ido ao Juizado na época, provavelmente não teria conseguido a guarda de Ivan, mas foi a própria mãe, sem condições de criar o menino, que decidiu doá-lo a Rudy. Hoje, Ivan estuda Educação Física, tem uma namorada há um ano e se acha um cara de sorte. “Podia ter ficado num orfanato e nem sei o que teria acontecido”, afirma o rapaz. “Meu filho costuma viajar comigo e com meu namorado, mas a relação já passou por crises”, diz Rudy.
Quando tinha sete anos, Ivan chegou em casa triste porque os amiguinhos da escola haviam dito que o pai era bicha. Rudy sentou e falou para o filho que ele ia ouvir dizerem muitas coisas, e que provavelmente era tudo verdade, mas que aquilo não importava na relação dos dois. A cabeleireira, hoje com 48 anos, resolveu em 1989 se operar para mudar de sexo. Foi quando disse para o filho chamá-la de mãe. “Foi muito louco passar a tratar alguém que foi sempre pai de mãe. Mas me acostumei”, lembra Ivan. Nessa fase de adaptação, os dois quase mataram um motorista de táxi do coração, quando Ivan chamou Rudy – vestida com roupas femininas, maquiada e com longos cabelos loiros – de pai. Hoje, divertem-se com a história. “O segredo é dizer sempre a verdade”, ensina Rudy. Maria Teresa Palazzo Nasar, médica e psicanalista, alerta que uma das condições fundamentais para que uma relação entre pais solteiros e filhos adotivos seja saudável é a inclusão de uma terceira pessoa. “O relacionamento estritamente a dois tem tudo para ser doentio. A criança não pode ser tudo para o pai ou a mãe nem o contrário. É preciso ver se o adotante tem uma relação erótica feliz, seja ele casado, solteiro, hetero ou homossexual”, recomenda Maria Teresa. Caso a criança seja adotada para suprir essa carência, a convivência pode ser um desastre para ambos. “A miséria e o abandono vão além dos abrigos, pois muita criança rica está abandonada”, ela comenta.
Fonte: GAASP
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